9 de abr. de 2011

# O Hino Nacional é plágio?

O padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) é uma das glórias da música erudita brasileira. Compositor de mais de 500 peças, foi mestre da Capela Real do Rio de Janeiro, posto mais alto a que podia chegar um músico em seu tempo. Conquistou-o graças ao talento, vencendo o preconceito. Era mulato, neto de uma escrava. Foi também teórico e regente. Conduziu a primeira apresentação do Requiem de Mozart nas Américas, em 1819, com tal maestria que sua performance repercutiu até na Áustria, terra natal do compositor. Francisco Manuel da Silva (1795-1865) era um aluno aplicado do padre José Maurício. Sonhava em ser grande como seu professor. Faltava-lhe, no entanto, a centelha do talento. Seus estudos pareciam servir-lhe apenas para perceber, com clareza cada vez maior, como o mestre era genial, mais ou menos como acontecia com Salieri em relação a Mozart. A posteridade foi injusta com os dois compositores. No século XX, estudiosos de música elevaram José Maurício Nunes Garcia à santíssima trindade da música erudita brasileira, ao lado de Carlos Gomes e Villa-Lobos. Já nas partituras de Francisco Manuel da Silva nada de muito interessante foi encontrado pelos especialistas. O aluno, no entanto, alcançou uma glória negada ao professor: ter uma música de seu opaco catálogo na ponta da língua de milhões de brasileiros. Sim, porque Francisco Manuel da Silva é o autor do Hino Nacional.

A história, no entanto, não acaba aí. Vários musicólogos brasileiros se debruçam, hoje em dia, sobre uma hipótese cada vez mais plausível: a de que o Hino Nacional, única faísca de brilho na fosca obra de Francisco Manuel da Silva, é, na verdade, cópia de um tema do padre José Maurício Nunes Garcia. A suspeita ganhou corpo em Juiz de Fora, em 1995. Durante o festival de música colonial da cidade, o mais importante do país na área do barroco, o maestro carioca Sérgio Dias executou, com orquestra e coro, um ofício religioso de autoria do padre José Maurício, Matinas de Nossa Senhora da Conceição. A platéia, composta em sua maioria de especialistas, ficou estarrecida. Havia um trecho incrivelmente semelhante ao Hino Nacional. De lá para cá, vários estudiosos começaram a estudar o assunto e os primeiros resultados estão saindo agora. Segundo os musicólogos, é perfeitamente plausível, cronologicamente, que Francisco Manuel da Silva se tenha baseado no tema para compor o hino. Os leitores poderão comparar os trechos aqui, tendo como base uma gravação ao vivo feita no próprio festival de Juiz de Fora.

Matinas de Nossa Senhora da Conceição - Responsório Sétimo
Autor: Pe. José Maurício Nunes Garcia 
Gravação realizada no VI Festival de Música Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora pela Orquestra e Coral do Festival 
Regência: Sérgio Dias

Hino Nacional Brasileiro 
Autores: Manuel Francisco da Silva e Osório Duque Estrada 
Gravação realizada pelo Projeto Guri/Pólo Mazaroppi para o livro Ouviram do Ipiranga, de Marcelo Duarte (Editora Panda, 1999) 
Regência: Walter Baptista de Azevedo/Regina Kinjô

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Esclerose e ironia
Há várias versões sobre a origem do Hino Nacional. A primeira música criada com essa finalidade foi escrita pelo próprio imperador dom Pedro I, à época da emancipação do país, em 1822, e sobrevive com o título de Hino da Independência. O estudioso Aldo Pereira, autor do livro O Hino Nacional Brasileiro, defende que a partitura de Francisco Manuel da Silva teria sido escrita às pressas, em 1831, para celebrar a abdicação de dom Pedro I. Como o imperador caíra em desgraça, sua música também foi condenada ao limbo. Outra hipótese é aventada pelo jornalista Marcelo Duarte, que pesquisou o assunto para escrever o recém-lançado livro infantil Ouviram do Ipiranga – A História do Hino Nacional Brasileiro. Segundo ele, a música de Francisco Manuel da Silva teria sido composta em 1822, para celebrar a independência do Brasil, e engavetada porque o imperador, obviamente, preferia a partitura que ele próprio criara. Em ambos os casos, a história do plágio seria aceitável. Após estudo aprofundado, musicólogos chegaram à conclusão de que Matinas de Nossa Senhora da Conceição, que não está datada, é de 1821 ou 1822. Nessa época, Francisco Manuel da Silva trabalhava como copista e arquivista da orquestra da corte. Ou seja, é muito provável que a partitura tenha passado por suas mãos, já que praticamente toda a produção musical de compositores importantes chegava até ele. Pouco depois de compor Matinas..., Nunes Garcia ficou esclerosado. "Ele era incapaz de reconhecer as próprias composições que criara. Francisco Manuel da Silva se aproveitou da doença do mestre e copiou o tema", afirma o regente Marcelo Antunes Martins, que, à frente da Orquestra de Câmara de Indaiatuba, especializada no repertório barroco, lança em abril a primeira gravação comercial de Matinas de Nossa Senhora da Conceição.


A questão é polêmica
O maestro Sérgio Dias, que trouxe a partitura à tona, acha que não se pode falar exatamente em plágio. "O tema de Nunes Garcia foi desenvolvido por Francisco Manuel da Silva no Hino Nacional num contexto de citação, procedimento comum na época, talvez até como homenagem ao mestre", diz ele. Outro musicólogo, Paulo Castagna, da Universidade Estadual Paulista, acha que tudo pode ser apenas uma coincidência. "É bom lembrar que as temporadas líricas chegaram ao Brasil por volta de 1821, e a ópera italiana exerceu grande influência sobre os compositores brasileiros", comenta ele, que reconhece no Hino Nacional alusões a árias escritas por Franz Liszt (Don Sanche) e Giovanni Pergolesi (La Serva Padrona). O cravista e pesquisador Marcelo Fagerlande encontrou outro trecho semelhante ao Hino Nacional num estudo incluído pelo padre José Maurício em seu Método de Pianoforte – pelo qual provavelmente Francisco Manuel da Silva estudou. A controvérsia guarda uma ironia. Apesar da fragilidade poética da letra escrita em 1909 pelo crítico Osório Duque Estrada, o hino brasileiro é um dos mais belos entre seus pares no mundo por causa da melodia criativa. Ele pode ser fruto da inspiração de um dos melhores compositores do país em todos os tempos, que estava vivo na época da independência, e a quem o hino poderia ter sido encomendado não fosse sua doença. Por linhas tortas, essa inspiração chegou à partitura pela pena de copista de Francisco Manuel da Silva

Matéria veiculada na Revista Veja - Edição 1 635 - 9/2/2000
PS: Esse post não é um plágio da matéria da revista e sim uma "reprodução não autorizada (kkk)"
Original: Clique AQUI!

3 comentários:

  1. Adorei o post.
    De fato não acredito em plágio. Para mim seria um espécie de "intertextualidade" musical, uma referência ao compositor. Talvez até uma homenagem. Coisas como esta também ocorrem nas valsas "Gotas de Lágimas" de Mozart Bicalho e "Noite de Lua" de Dilermando Reis. A valsa "Noite de Lua" foi composta depois de "Gotas de Lágrimas", mas eu a considero uma homenagem que Dilermando fez a Bicalho. Penso o mesmo do Hino Nacional.

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  2. Compositores quando se inspiram na obra de seus mestres, sempre em forma de gratidão fazem questão de enfatizar ou dedicá-la aos seus mestres. Então não vamos nos fingir de inocentes a tal ponto de não pensar em plágio.

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